Cuidando de Idosos na Irlanda

junho 14, 2022

Um dos empregos que nunca imaginei que teria na vida é de cuidadora de idosos, não é o tipo de emprego que você sonha desde a infância em exercer. Mas confesso que foi o que mais me possibilitou aprender, mas quando digo aprender não é de forma acadêmica. É aprender sobre mim mesma. Aprender sobre o ser humano e a vida. 

Como todo trabalho - e tudo na vida - tem seu lado bom e ruim. Aprendi muita coisa, vi um lado da vida que nunca tinha parado pra pensar, que não enxergava. Conheci uma realidade bem diferente da minha, de inicio um pouco apreensiva, mas depois inspiradora. Sim, me inspirou a viver a vida plenamente a ser uma pessoa melhor, a cuidar dos meus e a enxergar um futuro que não tinha pintado ainda.  


Aprendi com "meus véinhos" - forma carinhosa que as cuidadoras se referem aos idosos - a me valorizar, a olhar o meu potencial. Me lembro de conversar uma tarde com o George, um senhor viúvo, gentil e muito simpático que morava sozinho - a minha tarefa era passar meia hora com ele, e dentro desse tempo preparar o jantar dele, que na verdade ficava congelado, então era só esquentar no micro-ondas - e enquanto ele jantava nós conversávamos. Entre uma das coisas que conversávamos ele gostava de corrigir meu inglês e me mostrar novas palavras, contar histórias da região de onde morava e da família dele - ele tinha três filhas, uma já falecida e netos que moravam em Portugal. Um dia desabafei com ele sobre questões de visto e como o trabalho de cuidadora de idosos parecia em alguns momentos injustos, e ele muito gentil e amável disse que eu tinha que mostrar para a empresa que eles precisavam de mim, que ele - o George - precisava de mim, se eu não for lá ver ele e saber se ele esta bem, quem mais iria? E ainda disse que o meu trabalho é essencial e deveria ser valorizado. E ainda contou a historia de quando fazia parte do sindicato dos trabalhadores e eles lutavam pelos seus direitos no trabalho. Quando chegava na casa dele eu sentia que pra ele aquele momento era importante. Era só eu abrir a porta e ele automaticamente desligava a TV para me dar atenção e ficar conversando, exceto no dia que eu aparentava cansaço e sono e ele gentilmente me disse para sentar no sofá, fechar os olhos e descansar por meia hora e assim obedeci - pois estava mesmo cansada - e ele abaixou o volume da tv pra não incomodar e não disse uma palavra. Quando deu o horário de ir embora, ele me olhou e me perguntou se estava me sentindo melhor, disse que sim, e ele respondeu descansar por meia hora faz bem. 

Alias ele não foi o único a me deixar descansar em seu sofá no meio de um dia cansativo, a Evelyn uma senhora de 90 e poucos anos que tenho muito carinho também me deixava sentar no seu sofá e assistir ao seu programa de tv favorito juntas, o Countdown é um programa britânico onde os participantes competem mostrando suas habilidades matemáticas e lexical. 


A Evelyn é uma fofa, sentia como se ela fosse a avó que não tive, sempre me perguntando antes de ir embora se o meu casaco era quentinho ou dizendo para me agasalhar - sabe como é a temperatura Irlandesa - Ela era uma senhora muito bem cuidada pela família, morava sozinha todos os filhos e filhas casadas(os), era possível ver as fotos espalhadas pela casa, acredito que ela seja viúva - assim como o George - mas nunca perguntei, a filha mais velha dela ia toda sexta feira cozinhar para ela e deixar as marmitas na geladeira e fazer companhia a tarde. E todas as vezes que a encontrava ela era sempre muito fofa, igual a mãe. A ultima semana que a visitei eu já sabia que não a veria novamente, pois iria pedir pra mudar de área de atendimento, a casa dela era muito longe pra mim, então iria solicitar mudança pra uma área próxima. Lembro de sentir uma dorzinha no coração de saber que nunca mais a veria, mas ao mesmo tempo sinto um conforto em saber que ela tem um excelente suporte. 


O que não posso dizer o mesmo do Anthony - e não era culpa dele - mas era de cortar o coração ir na casa dele e ver o estado deplorável da casa, ele também morava sozinho e no seu caso, ele nunca foi casado e nunca teve filhos, o parente mais próximo a ele é seu sobrinho que levava mantimentos e era responsável por levar as roupas dele pra lavanderia. No caso do Anthony ele ficava sozinho a maior parte do tempo, vestindo roupas velhas que pra mim estavam sempre sujas - mesmo sabendo que o sobrinho levava na lavanderia. O Anthony é parcialmente cego, então tinha que ajuda-lo a trocar de roupa e deixar frutas já picadas pra ele na pia da cozinha, que quando sentisse fome ele pegava. No caso dele eu sentia que o trabalho de cuidadora deveria ser mais do que fazer companhia, ajudar na alimentação e a medicação, porém ser cuidadora de idosos é limitado, não temos conhecimento de enfermeira e tão pouco somos faxineiras. Então não nos era permitido interferir ou ir além do que é solicitado. O nosso trabalho é dar suporte nas tarefas diárias, e ajudar no que for necessário num período de uma ou meia hora por dia. Quase chorei no dia que disse tchau pro Anthony, após ele me fazer várias perguntas sobre mim, e quando cheguei na porta da casa dele ouvi ele conversando com ele mesmo e repetindo várias vezes o nome dele completo, me pareceu como uma forma de não esquecer quem ele era. 


Margareth é uma senhora que ao contrário do Anthony sabia quem ela era, tem uma boa memória e como tinha. Se eu chegasse no horário diferente do que estava marcado ela me questionava. Com ela aprendi a fazer acordo e negociar. Minha agenda era ir na casa dela de manhã, as 10h, porém era muito tarde pra mim - quem faz a agenda das cuidadoras é o escritório - lembro que saia da casa de uma senhora que é vizinha dela uma hora mais cedo e pra mim não fazia sentido ficar na rua passando frio só pra esperar dar o horário dela, e depois de muitos dias conversando e negociando um dia ela concordou e aceitou que eu chegaria mais cedo - independente do horário que o escritório tinha definido. Uma coisa ela tinha em comum com o Anthony, ficava sozinha e diferente dele, ela parecia se importar. Um dia reclamou sobre isso, tem cinco filhos e nenhum deles da atenção que ela gostaria e disse que se tivesse tido uma menina talvez seria diferente - a Evelyn teve sorte nesse sentido. 


Mas também tive momentos de muitas risadas como cuidadora e nem parecia que estava trabalhando, é o caso da Geraldine, de todas os idosos que já tinha cuidado ela é a mais jovem, na verdade acho até estranho chamar ela de idosa, pela idade ela é - tem por volta dos 60 quase 70 anos. Porém ela é totalmente independente, não precisava dar comida, ou ajudar a trocar de roupa, manipular seus remédios ou trocar fralda - alias, ela não usa fralda mesmo - a única ajuda que ela me pedia era pra sentar no vaso sanitário enquanto ela tomava banho e ficávamos conversando - ela tinha medo de escorregar no box e dizia que não tinha bom equilíbrio, até hoje não sei qual a doença que ela tem, mas uma vez por semana tinha que ir ao hospital tomar bolsa de sangue pra se sentir mais forte. Uma outra ajuda foi pra cortar umas plantas que estavam crescendo tortas no seu jardim, e ela não tinha forças com a tesoura. Com a Geraldine eu sentia que estava conversando com uma tia mais nova e/ou amiga, e assim como o George, ela me ajudava no inglês. Quando contei que tinha uma entrevista de emprego, me ajudou a treinar pra fazer bonito, me desejou sorte. No dia seguinte, contei como foi e ela disse a vaga é sua, tenho certeza. E ela estava certa, a vaga foi minha. 


Com Kevin eu aprendi que um homem gentil e atencioso sempre será gentil e atencioso, até na doença. O Kevin tinha suporte 24h por dia da esposa. Ele é independente fisicamente, e gosta de andar, se movimentava o tempo todo - o que deixava a esposa e filhas um pouco nervosas, por que ele não tem bom equilíbrio, assim como a Geraldine. Mas ao contrário da Geraldine, ele tem demência, porém minhas tarefas com ele não passava de entrete-lo para que a esposa pudesse descansar, assim como ele, ela é uma senhora idosa. Então, quando o tempo estava bom saíamos pra dar uma volta no bairro e conversar, quando o tempo estava ruim ficávamos em casa e coloríamos o livro de adulto que ele tem - foi numa dessas que lembrei que eu tenho um livro assim e voltei a pintar. E enquanto coloríamos o livro, ele constantemente elogiava meu trabalho. Quando ficava muito tempo sem ver a esposa ficava agitado e logo levantava da mesa e começava a procura por ela, mesmo com a demência ele esta sempre de bom humor e com uma piada pra contar. Quando era hora de ir embora, ele sempre fazia questão de me levar até a porta. 


Em um dos últimos atendimentos antes de deixar a empresa e partir para mais um novo desafio na qual fui aceita - entenda novo emprego - recebi na minha agenda uma senhora que nunca tinha ido antes, mas reconheci o endereço dela, era a mesma rua que o George morava - fazia um tempo que não ia mais ver ele, pois tinha sido internado e ele saiu da minha agenda. E por não ter mais noticias dele fiquei animada em passar lá. Quando passei na frente da casa dele, estava toda fechada, achei estranho e fui pra casa da senhora vizinha dele. Depois de uns 20 minutos conversando com ela comentei se ela conhecia o George, e expliquei que cuidava dele uns tempos atrás. 

E foi quando ela deu a noticia que ele tinha falecido, logo após ter sido internado. Na hora fiquei em choque e entendi por que a casa estava toda fechada. Confesso que senti como perdendo um ente querido. Que o George descanse em paz. 

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